sábado, 19 de agosto de 2023

Sobre amores, cólera e espera

 

Recebi esse livro por correio, chegou bem velho e cheio orelhas, páginas amareladas, a lombada com vinco. Fiquei meio decepcionada, mas o coloquei na estante para que esperasse o momento de ser lido. Mal sabia eu que sua aparência denunciava seu conteúdo, não por ser ruim, mas por mostrar que a passagem do tempo, que as marcas que ele deixa, não diminuem em nada o sentimento que permanece depois dessa leitura.

Esse não é um romance meloso, não é aquele enredo que você só precisa ler meia sinopse para saber o final, mas lê mesmo assim porque é uma história bonitinha. Não, não é doce. Mas é o romance com a maior quantidade de amores sinceros que já vi na vida.

"As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas"

É sobre preservar um sentimento, mas não deixar de seguir a vida por isso e, ao mesmo tempo, seguir na esperança de que - enquanto houver chance - esse amor possa ser depositado no lugar devido. Tanto amor havia no personagem principal que acabou por guiá-lo a tocar várias vidas, amar e amar e amar tantas mulheres, amar sinceramente - ele não nomeava de outra forma. Eram amores, cada um com suas particularidades, mas ainda assim amores.

"Pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma"

Florentino começou ainda adolescente a descobrir como um sentimento pode atravessar o tempo e guiar sua vida, mesmo depois de uma rejeição. Não é à toa que os sintomas do amor se confundiam com o do cólera, ele toma seu corpo e mente. Embora isso não o tenha impedido de viver outros afetos e de dedicar-se a eles. É isso que eu acho mais interessante no enredo. A forma como ele reconhece que ama outras pessoas, que convive com elas, muitas vezes por anos e até décadas, como esses relacionamentos o afetam e como isso não diminui em nada o amor que ele tem por Fermina e que vai continuar a ter enquanto viver. Isso é o mais belo do amor. Não é um sentimento egoísta, não é ter o outro para si, mas dar o que se tem e receber o que há e ser feliz com isso. 

"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado"

Outra coisa que o livro mostra é a construção do amor que não chega de súbito. Como uma pessoa, com a convivência, vai construindo um sentimento nas pequenas coisas, até que se perceba amando a outra, um amor morno e calmo, mas forte como qualquer outro à primeira vista. Todos os tipos e formas do amor aparecem e todos são belos e válidos, pois todos foram bem vividos e me sinto grata ao Gabriel, por me lembrar que ainda consigo escrever sobre o amor.

"Pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte"



sábado, 29 de abril de 2023

O Talentoso Tom Ripley - Patricia Highsmith

 
O personagem principal desse livro me trouxe tantos sentimentos conflitantes que eu não tive escolha a não ser fazer uma resenha.

Tom Ripley é um jovem americano, na casa dos 20 e poucos, que vive de pequenos golpes, estelionatos etc., o famoso 171. Um dia, ele recebe a visita do pai de um conhecido, que pensava que ele era um amigo próximo do filho e, por isso, intercedeu por sua ajuda para convencer Dickie (o filho do Sr. Greenleaf) a voltar da Itália para os EUA e assumir os negócios da família. Para isso, o Sr. Greenleaf garantiu que pagaria todas as despesas de Ripley para essa tentativa.

Tom viu nesse pedido uma oportunidade para sair, nem que fosse de forma breve, de sua vida medíocre e viajar pela Europa, conhecer novos lugares, culturas e pessoas. Assim o fez. O rapaz não investiu muito na tentativa de trazer Dickie de volta para a família, pois viu nesse reencontro a chance de passar mais tempo que o previsto na Itália, tentando então fortalecer sua amizade com quem antes era apenas um conhecido, Tom se esforçou para fazer parte da vida de Dickie; saindo, fazendo-o rir, levando-o para aventuras. Porém, Marge, a companheira (por assim dizer) de Dickie, começou a sentir-se incomodada com a proximidade dos dois. O americano tinha sentimentos conflitantes sobre o que Tom queria dele, assim como o próprio trambiqueiro.

Além de uma certa atração sexual ou afetiva, percebe-se em Tom uma inveja profunda do estilo de vida de Dickie, como se ele não a merecesse por não aproveitar ao máximo. Ripley pensava o tempo inteiro como seria viver como o amigo, na Europa, cercado de cultura e de bens materiais de qualidade. Percebendo que sua presença não era mais desejada nem por Dickie e nem por Marge, Tom acaba agindo por impulso, desesperado por não perder o estilo de vida que antes não conhecia, mas que passou a adorar.

A partir daí, vemos como Tom passa por uma transformação ou exacerbação em seu estado mental fragilizado. Sua vida vira uma sucessão de mentiras, tão elaboradas que ele mesmo passa a acreditar nelas. Ele age como um ator em tempo integral, passando e repassando situações em sua cabeça para evitar perder o que conquistou por meios definitivamente sórdidos. O mais impressionante não é o quão elaborada é a fantasia que Ripley cria, mas o quanto seu ego sustenta tantas mentiras e o quanto ele manipula a si próprio, crendo estar sempre certo em suas decisões, vendo qualquer erro apenas como um empecilho à vida que ele tem certeza que merece.

Um personagem imerso numa torrente de mania de grandeza, soberba, mesquinhez e arrogância que arrasta quem estiver no seu caminho para não voltar a ser o jovem miserável que era em Boston.

Leitura fascinante de um dos romances policiais mais aclamados.


Nathaly M. 

sábado, 25 de março de 2023

Se eu fosse eu


Esse ano, na minha lista de leitura, mais de um terço dos livros são de Clarice. Por quê? Não sei. Talvez seja apenas a saudade do que ela me faz sentir. (Nathaly M.)

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. 

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Clarice Lispector

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A vida invisível de Eurídice Gusmão - Marta Batalha

 

 

Já fui mais produtiva em questão de resenhas de livro, mas hoje em dia só faço quando me sinto impelida a isso pelo próprio livro. Foi assim com Crime e Castigo e foi assim, agora, com A vida invisível de Eurídice Gusmão.

Por quê invisível? Você se pergunta. Invisível por ser igual a de milhares de outras mulheres na sociedade do Rio de de Janeiro em meados do século XX. Invisível, por ser também tão arcaica quanto atual. Ainda existem por aí milhares de Eurídices, engaioladas em seu próprio papel de dona de casa e cuidadora dos maridos e filhos.

Marta Batalha descreve de forma fluida e muito prazerosa o percurso social da mulheres cariocas daquela época; colégio, namoro, casamento. Saindo de uma prisão e indo para outra.

Eurídice é o modelo perfeito, sempre tímida e acanhada, era ofuscada pela irmã mais velha, Guida, que - de certa forma - agia a frente de seu tempo, por enxergar a vida com olhos de quem quer ir além do senso comum, de quem sabe o que quer. Porém, mesmo sabendo o que queria e tendo movido mundos e fundos para conseguir, Guida também encontrou-se em uma prisão social, ligeiramente diferente da que a irmã encontraria depois que Guida fugisse de casa para viver um grande amor.

Sem a filha mais velha em casa, todos os esforços dos pais de Eurídice foram para que ele seguisse a trajetória almejada para uma "moça de família" e assim foi. Mas Eurídice, como milhares de outras mulheres, tinha dentro de si algo que queria mais que aquilo; mais que cuidar dos filhos, da casa, do marido; Eurídice poderia ser o que quisesse, tinha potencial para o que se aplicasse a fazer. Tentou várias vezes, em campos diferentes, mas ao manifestar suas habilidades logo era silenciada, pois nem marido nem filhos tinham interesse no que ela estava a fazer de forma extraordinária; sentindo-se diminuída, Eurídice se recolhia novamente até encontrar um novo interesse.

Foi nesse recolhimento recorrente que Eurídice acabou perdendo a vontade, dava para ver em seus olhos, não tinha mais aquela vontade de ter algo só seu, de que adiantava?

Não só o marido, mas toda a estrutura social esmagava quaisquer aspirações de mulheres que deveriam ficar quietas em casa, cumprindo seu papel maternal. A sociedade representava "a parte de Eurídice que não queria que Eurídice fosse Eurídice", acho que esse foi o termo mais sensacional que eu já vi no livro.

Poder ser quem quiser é, ainda hoje, um privilégio. Temos mais liberdade social? Sim. Temos mais direitos que antes? Sim. Mas nossas amarras mentais nunca foram tão fortes como atualmente. É isso que vejo na escrita de Martha: uma atualidade arcaica.

Em meio aos dilemas de Eurídice, deparamos com outros elementos muito comuns a qualquer sociedade, não só a carioca. A vizinha fofoqueira e amargurada (também com seus motivos e história de vida), o filho que ficou para cuidar da mãe até morrer e a mãe que não deixa esse filho viver a não ser para ela e somente ela. O marido que não se satisfaz com a esposa modelo de comportamento por que acha que não foi o único a tê-la em seus braços. O amor frágil que sucumbe ao primeiro sinal de dificuldade. A luta das mães solteiras. A vida ainda mais invisível da empregada doméstica da qual os patrões não tem noção do tamanho do sofrimento e que ela abafa pra sobreviver um dia de cada vez.

É um livro que espelha a dificuldade da vida de uma mulher em vários âmbitos e de forma tão clara e leve que é praticamente impossível não se enxergar nem que seja em um único pedacinho dele.

Com certeza, virou uma das minhas escritoras brasileiras favoritas, já quero ler outras de suas obras.


sábado, 8 de outubro de 2022

Sobre ser o seu próprio colo


Eu considero que gosto da minha companhia agora, consigo me entreter, ter meus objetivos, me acalmar sozinha. Mas há dias em que é pesado demais; em que aquela voz dentro de mim fala que eu não importo para ninguém, que não posso contar com ninguém, que só é bom estar comigo em momentos felizes, mas quando minha parte triste aparece não há quem me console.

Nessas horas, eu preciso brigar comigo mesma. Sempre serei meu próprio colo, ninguém pode fazer isso por mim. Nos dias em que a parte de mim que não gosta de mim resolve não calar a boca, eu preciso brigar de volta e com força. Alguns dias eu perco, deito a cabeça com os olhos salgados e durmo, mas ao amanhecer eu estou de pé, novamente na luta.

A vida é mais do que sentir pena de mim mesma. A vida tem infinitas possibilidades e eu não vou deixar nenhuma parte de mim me privar disso.


Nathaly M.